Pensamento e militância: desencontros e reencontros

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Há futuro para a vida militante? E se é assim, em que novos jeitos se manifesta ou enxerga? Som o anonimato, o trabalho abnegado e a diluição própria no ideal coletivo ainda princípios atingíveis para a militância contemporânea? Antom Santos escreve neste artigo de opinião sobre os modelos históricos nos que se têm conjugado militância e pensamento.

Há um certo apriorismo que confronta acçom a contemplaçom, intervençom a reflexom, e, desde que a esquerda intelectual se institucionalizou nas universidades de Ocidente, militância a pensamento. Este desencontro, que é real, nom deixa, porém, de ser umha meia verdade que pode entupir umha realidade histórica mui contraditória.

De origem latina, a palavra «militante» procede do latim militans, isto é: «o que se prepara para umha guerra». Na sua acepçom literal ou figurada, transmite fogosidade, entrega, apaixonamento, mais também perigo. Umha atividade, e umha disposiçom de ânimo, em aparência distantes do exercício da reflexom que, na tradiçom europeia e norteamericana, é frio, cerebral, sossegado e distante, apoiado num certo desinteresse com as partes, em certa neutralidade vigilante. Por isso o pensador tivo o seu habitat natural na placidez dos gabinetes universitários ou, como muito, na redacçom do jornal. Na literatura galega, um pequeno relato captou melhor que qualquer ensaio este abismo entre o coraçom e a cabeça, ou entre o ator e o espectador. Em Crónica de Nós (1980) de Xosé Luis Méndez Ferrín, o erudito míope de óculos grossos do conto «Episodio de caza» fantasea numha biblioteca do franquismo com cenas guerrilheiras que nunca viverá: «pos os lentes montados en cuncha, docemente retomas a lectura e a análise (…) porque ti non abandonache máis que en soños a túa coviña de mediocre espectador de actos alleos e as cousas relatadas non tiveron lugar». Na nossa história, como temos assinalado noutra ocasiom, a acusaçom do galeguismo moderado contra o arredismo apontou ao défice intelectual deste último, protagonizado por opinadores ousados que nom tinham competência nas letras nem na análise política. Blanco Amor dedicara estas palavras aos militantes da Sociedade Nazonalista Pondal na imprensa emigrante: «Escrever nom é o seu, evidentemente (Dediquem-se) a raparem barbas, venderem tartám, pintarem tápias, venderem leite e biscoitos de baunilha, empacotarem sapatos, venderem chafalonias, pintarem cartazes de cinema ou encerarem pisos…é o seu ofício, nom pretendam umha outra cousa» (a cita pode atoparse na biografia de Blanco Amor que escreveu Gonzalo Allegue).

Nom sempre fôrom assim as cousas. Na história, o exercício do pensamento mais elevado combinou muitas vezes com o rigor do choque, mesmo violento, que fôrom da mao de maneira natural. Na Europa clássica, o dramaturgo Esquilo, premiado muitas vezes como grande escritor e conhecedor insuperável da natureza humana, nom fijo gravar na sua lápida méritos literários, senom a afouteza na guerra contra os persas: «do seu valor que fale o afamado bosque de Maratom/ e o Medo de longa cabeleira, que bem o provou». Em tempos menos recuados, um escritor fracassado em vida como Miguel de Cervantes lembrava nas suas Novelas ejemplares como episódio marcante da sua vida o ter participado «na mais memorável e alta ocasiom que vírom os passados séculos…militando debaixo das vencedoras bandeiras do filho do raio da guerra». Esta alusom a batalhas remotas pode semelhar anacronismo e, sem embargo, qualquer vista de olhos às grandes estórias da militância esquerdista e nacionalista no mundo contemporâneo deita traços semelhantes: desclassamento, escrita de géneros diversos mesturados um pouco azarosamente em funçom das vicissitudes biográficas, participaçom na primeira fila das batalhas políticas e relaçom acidentada com as letras. Nos pensadores de famílias abastadas, conduzindo a sua produçom intelectual longe das estruturas da comunicaçom dominantes (universidades ou imprensa comercial). No caso dos militantes procedentes do proletariado sem formaçom académica, esforço pola alfabetizaçom autodidata e conversom em autores de referência no espaço dos movimentos sociais, com pouca ou nula homologaçom académica. Um grande exemplo entre milhares temo-lo na nossa própria tradiçom independentista, quando um canteiro de Sebil, Johám Jesus Gonçález Gómez se fai advogado, novelista, teórico e, finalmente, militante alçado em armas frente o golpe em 1936.

Foto de Andrés Currás

Letra impressa, reflexom, acçom

Alfonso Sastre acunhou um termo afortunado, «camarada escuro», para aludir a essa figura paradigmática do movimento obreiro que, desde o anonimato e o trabalho abnegado, sempre coletivamente, ajudava a erguer poderosas organizaçons populares. A escuridade e o trabalho silandeiro, sem rúbrica pessoal, pareciam representar o contraponto ao intelectual progressista burguês, associado ao sucesso individual, a fama e os frutos do génio solitário. Na sua produçom jornalística, antologada no ensaio Revolución y cultura (1976–1982), Sastre ainda complementava esta tese, mas esclarecendo que por duro, sujo e prosaico que fosse o labor político, este era, por riba de todo, intelectual: o exercício constante dum pensamento orientado à acçom, ainda que por vezes nom deixasse pegada escrita. Levando ao extremo esta filosofia, o pensador marxista italiano Amadeo Bordiga, que poucas vezes assinava com o seu nome, teorizou contra a noçom de autor, e defendeu que eram os textos anónimos, baixo assinatura coletiva, os que melhor encarnavam o sentido coletivo da classe.

Luzes e sombras

Na reconstruçom da militância anarquista contemporânea que fai no seu livro Cabezas de tormenta:
ensayos sobre lo ingobernable (2004), Christian Ferrer aproxima muitos protótipos da cultura libertária a umha espécie de «santidade laica». Nela, a entrega a um ideário e a sensibilidade pola justiça social funde-se com a procura dumha vida mais real e mais autêntica, e as arelas de formaçom e produçom intelectual atopam aqui um lugar muito natural. A promoçom da leitura, o ateneísmo e os grupos de estudo, a cultura do choque de ideias e a reflexom autónoma som alguns dos alicerces que iriam constituir um ser humano substancialmente diferente. Com apoiatura estatal, semelhante propósito representa a ideia socialista do «homem novo», síntese de elevada moralidade, habilidade técnica e manual, e gosto pola cultura, modelo que logo perdeu a batalha contra a ânsia consumista e a libertaçom dos desejos das democracias liberais.

Nas últimas décadas, e em contraposiçom à tendência alcista dos integrismos religiosos nascidos na periferia, o modelo da entrega de raiz ilustrada parece abalar. Os compromissos a longo prazo –em todas as ordens, e também no das adesons coletivas– enfraquecêrom-se de tal modo que pugérom em causa mesmo as instituiçons que considerávamos mais inamovíveis. As paixons políticas ocidentais nom desaparecêrom, porém, formulam-se maioritariamente a modo de explossom pontual, emissom incontinente de opinions, ou súbitas modas partidárias que empuxam milhares numha direcçom, pouco antes de mudarem bruscamente de sentido.

Por outra parte, vimos como as condiçons que propiciavam o pensamento sofriam um certo deterioramento, o que também influi na capacidade de enxergar a vida em chave militante. A revoluçom tecnológica pujo nas nossas maos a biblioteca universal, um sonho que os devanceiros nem podiam conceber. Mas, ao mesmo tempo, isto arredou-nos do espaço natural do pensamento. Até a reflexom orientada à acçom precisa de dous elementos: silêncio e prazos longos. Na permanente balbúrdia, a produçom de pensamento confunde-se com a produçom mediática: imediatez, necessidade imperiosa de audiências, impacto emocional e procura ansiosa da originalidade, num jogo de híper-concorrência esgotador.

Lastros e futuros

Mas nom nos enganemos: a militância, como todas as mostras da excelência humana –científica, literária, artística, moral– foi sempre rara, excecional, e por isso tam valiosa. Mesmo sem existir o consumismo, a internet e as redes sociais, as causas coletivas teriam que enfrentar-se aos mesmos processos de degeneraçom que padecêrom há douscentos, cem ou cinquenta anos: em muitas ocasions, a lealdade a umha ideia virou simples adesom a umha estrutura burocrática que fornece consolo, protecçom de grupo, ou mesmo emprego; em outras, o pensamento criativo e realmente revolucionário sacrificou-se à pura autojustificaçom da própria sigla, de mao de assalariados da letra impressa. Em dinâmicas que tam bem conhecemos, os espaços da esquerda virárom umha e outra vez em cenáculos abafantes para as luitas das vanidades e aquelas arelas de promoçom pessoal que, na sociedade mais convencional, se exprimem no mercado.

Como todo bem escasso, frágil, valioso, a militância é algo que deve ser cultivado e promovido, no canto de deitá-la ao lixo cinicamente por utópica; e se se torce e degenera, nom devêssemos cair na simples soluçom  de culpar só os grandes males do nosso tempo –o capitalismo, o patriarcado, a sociedade líquida– do seu deterioramento, evadindo as próprias responsabilidades das gentes que as protagonizam; senóm ter presente que as pessoas somos realidades muito pequenas e defeituosas empenhadas por vezes em grandíssimas empresas, com o risco de falência que isso acarreta.

Tem futuro a militáncia? Tem futuro a implicaçom em corpo e alma combinada com o esforço do pensar? Nom o sabemos, mas esperamos que sim. As novas promoçons galegas, com um nível de formaçom técnica e académica que assombraria qualquer familiar nosso nascido há um século, podem ser umha canteira inesgotável para pôr saberes e destreças, organizadamente, ao serviço do comum. Dim os cépticos, com razom, que com o avanço da qualificaçom recuou também a capacidade para o entendimento coletivo, e que na hoje chamada «geraçom de cristal» se esvaeceu aquela disposiçom a encarar à adversidade que foi sempre a melhor garantia de todo movimento. No horizonte, porém, assomam desafios enormes que nos vam transformar de raiz: o caos climático, o fascismo rearmado, os direitos em recuo, indicam-nos às claras que a formaçom nom o vai ser todo. Cumprirá cooperar, cumprirá organizar-se, e cumprirá assumir que a dureza virará numha exigência para habitar estes tempos com esperança e dignidade.

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