O que fazer na militância do século XXI? Resposta a Ximena González

jota

A desmobilização social em que vivemos é consequência dos modelos de militância que praticamos? Que atitudes podemos adoptar diante dela? José João Rodrigues contesta a análise de Ximena González e traça novas linhas para o debate.

Para as minhas amigas, companheiras, camaradas que me ajudam a imaginar um mundo melhor.

Há uns meses atrás este mesmo Espaço publicou um artigo de Ximena González cujo tópico era a militância: a autora fez lá uma análise retrospetiva dos modelos militantes que vigoraram no presente século e expressou a sua preferência por um deles. Antes de tudo, vou agradecer à autora o esforço e a publicação em si, pois na atualidade é escassa a reflexão sobre assuntos tão práticos como a militância, a vida diária das pessoas comprometidas com alguma causa, o que é de lamentar, sobretudo porque são precisamente estes assuntos práticos os que mais reflexão e conversa precisam. Porém, além do imenso respeito que professo pelo texto e pela sua autora, não consigo senão dissentir profundamente da maior parte das coisas que dizem.

Sem pretender uma revisão exaustiva do artigo de González, exporei brevemente aqueles modelos de militância, ao passo que vou contestando a argumentação da autora em favor de um deles. Encerrarei com uma série de perguntas ou possíveis linhas de discussão que julgo pertinente os sectores intelectuais e/ou militantes-ativistas do nosso país empreenderem.

Antes de começar a exposição, quero lamentar a escassez de referências bibliográficas, que podiam servir a quem tiver algum interesse nos assuntos aqui propostos. Na verdade, a maior parte destas ideias procedem de conversas com militantes e pensadoras de diferentes e diversos âmbitos, dentre as quais, sentindo que outras fiquem fora, quero referir, pelo especialmente valioso do seu contributo, os nomes de alguns como Xian Naia, Pablo Pesado, Pedro María Rey-Araújo, Andrés Sampayo e Elias Torres.

O confronto entre as vidas privada e política

De maneira simplificada, podemos dizer que há dois modelos de militância contrapostos, que denominaremos temporariamente partidista e movimentista.

O modelo de militância partidista assenta no compromisso permanente, na entrega e na disciplina como valores fundamentais. No seu Joyful militancy, Nick Montgomery e carla bergman chamaram-no de radicalismo rígido. Nele, quadros teóricos sólidos fornecem as certezas e os azos necessários para segurar uma luta constante, através dos anos e das circunstâncias, podendo assumir as maiores penas que derivarem da atividade política: coimas, pancadas, detenções, encarceramentos e, nos casos mais extremos, a morte de companheiras ou até mesmo a própria. Assim sendo, a vida pessoal das militantes fica submetida à agenda política. Este modelo é compatível com qualquer modelo organizativo, não só com o partido, mas tem nele a sua expressão mais nítida e mais clássica. Para colocar um exemplo concreto, a autodenominada linha histórica do independentismo galego defende este modelo militante, volcando boa parte da sua energia na solidariedade com as presas políticas e promovendo a sua figura como exemplos de militantes “até às últimas consequências”. Assim, na brochura Martinho. Lideranças amorosas da Galiza combatente editado pelas Assembleias Abertas Independentistas (2022), Antom Garcia Matos declara que “não é o medo à morte o que forja aos [sic] povos livres” (p. 23).

Já o modelo movimentista pretende a expansão dos movimentos sociais através de uma participação mais laxa, em que qualquer vizinha pode participar sem aceitar uma tábua muito extensa de mandamentos. A fórmula organizativa mais perfeita deste modelo militante é a assembleia aberta, em que o único comum é uma vontade muito específica, normalmente resolúvel no curto-médio prazo: opor-se a uma guerra, evitar a construção de uma fábrica, conseguir a contratação de uma cozinheira para o refeitório escolar etc. Ao expandir-se a sectores sociais não politizados, o modelo movimentista sacrifica o compromisso e a certeza quanto às forças com que conta: ao não exigir disciplina, as militantes flutuam, aparecem e somem em função de variáveis alheias à esfera política, tais como as responsabilidades pessoais, a participação de outras iniciativas ou, simplesmente, a vontade ou a eventual preguiça segundo os momentos. De facto, a expressão militância fica para algumas no limite do aceitável para este modelo, apelidando-o de ativismo –indistintos no presente texto–. O nosso país deu um bom exemplo deste modelo com o Nunca Mais e, anos volvidos, as fórmulas organizativas e o ethos próprio dele infiltrou-se nos movimentos sociais a partir da experiência do 15M, seguindo a sagaz análise da própria Ximena González.

Autocrítica, criatividade e repertórios emocionais

Se julgo atilada a análise das mudanças, não concordo com a diagnose dos processos subjacentes. Na opinião da autora, o problema esteve no tombo do compromisso propiciado pela falta de cultura política dos novos contingentes ativistas, o que teria dado em reproduzir os vícios do sistema. A este respeito, recupera a célebre expressão de Lorde segundo a qual “as ferramentas do mestre nunca destruirão a casa do mestre”. No entanto, podemos acreditar que as ferramentas do mestre podem construir umas novas ferramentas que, estas sim, destruam a sua casa. De facto, é nessa lógica que faz sentido vender álcool num centro social que promove o lazer alternativo, ou fechar fileiras num partido político a cada passo menos interessado na transformação social como o BNG pontonista – ou ainda ler Audre Lorde em castelhano, em vez de na língua própria, por sinal mais fiel ao original.

O principal défice do texto é a falta de um valor importante para a política: a autocrítica. A leitura do texto dá uma mensagem clara: nós estamos no caminho certo, mas o pessoal não mostra compromisso. Porém este problema não é, a meu ver, do modelo movimentista, mas do tempo que vivemos. O surto do teletrabalho foi a última volta de porca do individualismo promovido pelo sistema capitalista na sua fase atual, incapacitando-nos para pensar coletivamente. Não obstante, a militância de estilo movimentista construiu antes disto algumas das mais valiosas referências para pensar a transformação social. Sabemos pela investigação de Raquel Varela que a mesma Revolução dos Cravos foi feita pela auto-organização de pessoas totalmente alheias à participação política, quer no lugar de trabalho quer na própria morada, conseguindo paralisar as principais zonas industriais do país durante semanas e gerindo autonomamente o aprimoramento das infraestruturas em áreas suburbanas. Pulo popular que, já agora, foi em grande medida contra o modelo partidista dos principais sindicatos de esquerda do país.

O reitor e o gerente da USC debatem ante o olhar das ocupantes da Reitoria | La Voz de Galicia

Além de errada, acho que a leitura feita é pouco operativa, sempre que a falta de autocrítica limita o repertório emocional a que poderíamos aceder explorando outras atitudes, outras formas de enfrentar a desmobilização social: ficar sempre zangadas, a colocar a culpa no Outro, coloca um entrave difícil de contornar no caminho da transformação política por dois motivos.

Em primeiro lugar, porque não convida à participação de novas pessoas nos espaços que visam aquela transformação. Obscurece de facto o grande volume de militantes que abandonaram a vida política pelas feridas, a queimação e mesmo o trauma que produziram nelas as exigências do radicalismo rígido. Se o pessoal não mostra compromisso talvez não estejamos a oferecer propostas imbricadas nas suas preocupações ou, sequer, atraentes. A estratégia passa por desenvolver uma atividade militante que faça amáveis os nossos espaços e mostre que todas somos bem-vindas, em vez de assinalar culpáveis.

Em segundo lugar, aquela atitude deixa pouco espaço para um outro valor de importância fulcral na política: a criatividade. Os modelos sustentados em fortes elaborações teóricas, como o autoproclamado Movimento Socialista, agem mecanicamente sobre o caminho de pétreas certezas, mas a vida política necessita ter fendas por onde a criatividade possa entrar e traçar meandros. No final do curso passado, ativistas de uma Assembleia compostelana para a defesa do povo palestiniano ocuparam a Reitoria universitária e pernoitaram dentro do prédio. Bem que foram despejadas pela polícia na madrugada, dedicaram a noite a desconectar os cabos dos computadores, escondê-los e preparar uma gincana para o pessoal funcionário da Reitoria. A ideia era sabotarem a atividade oficial da Universidade para avançar nos seus objetivos, mas ter um mimo com as funcionárias, fazendo com que não fossem até ao lugar de trabalho em balde. Após o despejo, cantavam na porta do prédio: “Onde estão os cabos? Matarile-rile-rile!”. Esta e outras muitas ideias dessa Assembleia fruíram do convívio, da troca de opiniões com pessoas de culturas diferentes, políticas e nem só, que se tornam difíceis na estrutura monolítica e mesmo endogâmica das organizações. Isaac Lourido atendeu à criatividade artística emergida da atividade política no seu Livros que nom lê ninguém (Através, 2014) e em publicações mais recentes.

Aquela mesma Assembleia pró-Palestina foi criticada no Novas da Galiza nº 234 por Lisandro Cañón, que destacou as pugnas motivadas pela presença de militantes de organizações e sindicatos. Neste caso o modelo movimentista reproduziu a desconfiança popular e populista por qualquer forma partidista, incluindo no seu imaginário uma ligação entre as estruturas organizativas mais formais e vícios como o lucro ou o cainismo. González atribuiria esta preocupação, e com parcial razão, à falta de “cultura política” do modelo movimentista. Eu, para afinar mais, apontaria mais para a incapacidade dos dois modelos para conviverem. As vidas das pessoas experientes em política e as de outras alheias a ela formam uma simbiose de que podem surgir estratégias poderosas e impredizíveis, o que também é importante com inimigos fortes. 

Rumo a um novo modelo?

Vistos os limites de ambos os modelos, confesso a minha incerteza e mesmo a minha ingenuidade quanto ao famoso que fazer. Atrevo-me, apenas, a oferecer algumas interrogações, no desejo de que consigam estimular novas ideias, práticas e debates.

O modelo partidista acha a falta de compromisso um problema; o modelo movimentista acha a rigidez um problema; mais do que problemas, será que esses dois são aspetos inerentes à vida política e devemos tentar integrá-los no nosso agir quotidiano? No caminho desta conciliação, que serviço podem dar certos conceitos da psicanálise como desejo, goce, pulsão ou supereu? Que atenção estamos a oferecer às ferramentas conceituais e interpretativas saídas dos próprios espaços ativistas, às suas necessidades particulares? O que fazemos para garantir a irrupção da criatividade em vidas a cada passo mais monótonas? Então, quanto do nosso trabalho político faz sentido relativamente aos nossos objetivos e quanto é fruto do puro automatismo da militância? Por exemplo, como é possível passarem despercebidos ante os nossos olhos alguns dos problemas mais gritantes e visíveis da nossa sociedade, como a assistência e integração de pessoas em situação de pobreza extrema, doenças ou solidão?

Caseteira

20€

  • Revista impressa Clara Corbelhe + PDF todos os números.
  • Lâmina original seriada.
  • 20% desconto no Anuário de Produção Crítica.
  • 10% desconto nos livros em parceria com a Edicións Laiovento.

Caseteira

60€

  • Revista impressa Clara Corbelhe + PDF números anteriores.
  • Lâmina original seriada.
  • Anuário de Produção Crítica.
  • 30% desconto nos livros em parceria com a Edicións Laiovento.
  • Convite para a Jornada de Estudo (inclui jantar).

Caseteira

100€

  • Revista impressa Clara Corbelhe + PDF números anteriores.
  • Lâmina original seriada.
  • Saco Clara Corbelhe.
  • Anuário de Produção Crítica.
  • Livros em parceria com a Edicións Laiovento.
  • Convite para a Jornada de Estudo (inclui jantar).
  • Outras atividades de formação.

Caseteira

300€

Institucional

Colocamos ao dispor de outras entidades, públicas e privadas, uma colaboração de publicidade institucional e formação nas áreas de ciências sociais e humanidades.