Mas entom: existe umha arquitetura vernácula galega hoje?

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É possível falar de uma arquitetura vernácula atual? Num contexto em que a crítica acrescenta o valor da arquitetura do ponto de vista da adequaçom às linguagens locais vernaculares, qual é o lugar da arquitetura verdadeiramente popular neste contexto?

Ao folhear as páginas de uma escolma geral – e generalista – da história da arquitetura como Arquitetura: Toda la historia de Denna Jones (2019), percebem-se com surpresa algumas questons que nom som típicas neste tipo de obras: a presença, em cada um dos blocos em que se estrutura, da arquitetura vernácula, secularmente excluída do cânone historiográfico. Nom havendo espaço para uma clarificaçom de usos entre as palavras «vernáculo», «popular» ou «tradicional», com influência das contornas linguístico-culturais em que se utilizam, pode-se definir a arquitetura vernacular como aquela relacionada com a cultura tradicional de uma naçom ou regiom e caraterizada pola espontaneidade e a ausência de uma autoria, que devém coletiva, anónima. O que acontece no livro de Jones é que, quando chegamos até ao século XX, o apartado dedicado à arquitetura vernacular começa a ter nome e apelidos: a arquitetura vernácula já nom é a arquitetura popular, mas as reinterpretaçons e revivals desta arquitetura desde a arquitetura culta.

A apropriaçom contemporânea do vernacular foi paralela ao desenvolvimento da arquitetura moderna. A arquitetura vernacular foi reivindicada por alguns mestres da arquitetura moderna como Le Corbusier, que viam nela uma adaptaçom racional e funcional às condiçons materiais da realidade, tal como a arquitetura moderna pretendia responder às necessidades do seu tempo. Nom é em vam que uma das instituiçons de que dependia o estabelecimento dos cânones da modernidade, o MoMA de Nova Iorque, hospedasse uma exposiçom antológica para o conhecimento da arquitetura vernacular: Arquitetura sem arquitetos (1964–1965), um apelo à arquitetura «sem pedigree» em que, por certo, eram incluídos os hôrreos galegos e os espigueiros portugueses disfarçados do misticismo conferido às periferias peninsulares.

Na Galiza, estes processos de revalorizaçom do vernacular desde a modernidade som tam contemporâneos que cabe situá-los a partir das décadas de sessenta e setenta, quando convergem dois fatores: a crise ideológica da modernidade, com a consequente crise disciplinar da arquitetura, e o estabelecimento de uma estrutura profissional galega que pujo o foco na salvaguarda do património próprio. Previamente, desde uma conceçom mais purista, a olhada arcádica do galeguismo clássico de pré-guerra para a arquitetura vernacular traduzia-se também numa cruzada contra os estilos importados, os materiais modernos e mais a cosmopolitizaçom das vilas galegas através da arquitetura indiana, denominada «arquitetura ché» por Castelao ou Otero Pedrayo — hoje patrimonalizada, aliás, sem uma leitura da origem dessa riqueza. Voltando para a contemporaneidade, em 1971, num artigo chave para o descobrimento estatal das geraçons jovens que começavam a sua carreira, Miguel Ángel Baldellou via na obra destes arquitetos o «galeguismo arquitetónico» que atinge toda a arquitetura produzida na Galiza. «Na Galiza, toda a arquitetura, mesmo a das catedrais, é arquitetura popular», afirmava reservando para essa dimensom culta dous axiomas definidores do popular: a sutileza e a vontade de anonimato. Para esta geraçom, numa conceçom muito habermasiana, era preciso tomar os aspetos mais progressistas da modernidade e, através da arquitetura própria do país, criar, em palavras de Iago Seara, uma «nacionalidade espacial» que unisse a racionalidade do vernáculo e o moderno. 

A revalorizaçom da arquitetura vernacular nas últimas décadas do século XX foi também um dos leitmotivs da crítica arquitetónica estatal e internacional. Como acontece com outras manifestaçons da cultura e a literatura galegas, a crítica cria um cânone e coloca a arquitetura galega num sistema de difusom como parte de uma realidade estatal diversa, uma consequência direta da Cultura da Transiçom. Disfarçada de heterogeneidade e glocalidade, som inumeráveis as olhadas para a arquitetura galega organizadas arredor da ideia da vinculaçom da arquitetura contemporânea às raízes vernáculas, na utilizaçom de materiais tradicionais ou na reinterpretaçom de formas. Deve existir um fora, uma forma externa ao projeto que o legitime através da vinculação à tradição. Estas visons, por suposto, nom ficam isentas do conteúdo telúrico que se costuma consignar à cultura galega como realidade periférica e depositária de uma cultura milenária. O conhecido e polémico cemitério de Fisterra (1999) de César Portela (véja-se a imagem abaixo) é um bom exemplo: os columbários som vistos como hórreos templários num espaço sublime do finis terrae, na poética periferia da periferia. Assim, som as arquiteturas com nomes e apelidos as que recebem a herança do vernacular e a condiçom de vernacularidade.

Em paralelo a esta valorizaçom, o debate do mal chamado feísmo constitui uma verdadeira batalha cultural na Galiza de hoje, uma maniqueia luta em favor da conservaçom da autenticidade da arquitetura vernácula e a paisagem galegas. Com certeza, a primeira inconsistência do imaginário anti-feísta é a heterogeneidade de fenômenos que recebem esta consideraçom; se calhar, caberia falar de feísmos. Derivado disto, o discurso anti-feísta coloca casuísticas diversíssimas baixo um mesmo e moralizante prisma de purismo estético e paisagístico. Por exemplo, a vivenda galega contemporânea, cujas bases já foram estabelecidas por Plácido Lizancos, é agraviada e caricaturada, sem um interesse de abordar as questons antropológicas e culturais dessa deriva além da injúria ou a burocratizaçom do «conflito». Por exemplo, para Lizancos, a experiência da emigraçom é chave: as pessoas já nom querem construir a casa que simboliza o atraso que os obrigou a migrarem nem reabilitar a velha casa sem as comodidades do mundo contemporâneo. Desde a crítica hegemónica do feísmo, as soluçons e referências da casa contemporânea som censuráveis pela sua desconexom com a pureza da tradiçom. Embora partilha os mesmos essencialismos dicotómicos entre vernacular e cosmopolita ou vernacular e moderno do que os galeguistas velhos, revela uma contradiçom profundamente classista, uma dimensom especialmente visível quando é abordado desde o ponto de vista das emigraçons retornadas.

Mas, para além de abraçarmos um niilismo aparentemente frívolo e indiferente, o certo é que o mundo que foi berço dessa arquitetura vernácula já nom existe, mas sim um território em que fugir do extrativismo e o vaziado demográfico, mesmo como um exercício de resistência. Nom se duvida da necessidade de reabilitaçom da arquitetura vernácula ou mesmo da reinterpretaçom deste tipo de arquitetura nas linguagens contemporâneas, mas este exercício deve ser entendido como exceçom qualitativa e quantitativa da nossa realidade. Em primeiro lugar, porque as condiçons materiais para democratizar o «bonitismo» galego têm limites económicos e culturais claros. Em segundo lugar, se obviarmos maliciosamente estas limitaçons, produz-se um assinalamento daquela vivenda que mantém vivo o território, mas que passa a ostentar a categoria de «maltrato» da paisagem galega. Igualmente, a reabilitaçom científica e crítica, ao recuperar com fidelidade a matéria de uma arquitetura cujo contexto original já desapareceu, leva consigo inexoravelmente uma certa componente de petrificaçom contrária à espontaneidade que acompanha a arquitetura vernácula.

Neste ponto é preciso lembrar outro dos elementos que subjaz à definiçom de vernacular: a autenticidade. Se reparamos no Documento de Nara (1994) do ICOMOS, a autenticidade nom pode ser marcada com critérios fixos, mas através da subjetividade das comunidades, das pessoas usuárias da arquitetura. A casa contemporânea popular nom é só agraviada, mas despossuída da possibilidade de ser considerada como o estádio atual da arquitetura vernácula, enquanto existe uma crítica interessada em valorizar as reinterpretaçons da arquitetura vernácula histórica, um tipo que, apesar do seu interesse cultural, nom pode ser depositária do valor de autenticidade da arquitetura vernácula. De facto, Vicky Richardson, no seu estudo sobre a «nova arquitetura vernácula», nom só define as diferentes estratégias vernaculares atuais, mas também assinala as contradiçons existentes na toma de referências ou a assunçom de velhos artesanatos numa realidade técnica e cultural completamente diferente.

Para acrescentar mais uma reflexom sobre a autenticidade da memória vernácula desde a contemporaneidade, quando a arquiteta Pascuala Campos dirigiu em 1984 as intervençons no núcleo histórico de Combarro, o seu plano, para além da restauraçom de hórreos ou a reabilitaçom de espaços urbanos, incluía uma modesta intervençom funcional: a posta em valor de um velho lavadoiro (véja-se a imagem abaixo), situado num extremo da praça da Chousa, um recheio sobre o mar. A forma adotada, que lembra um hórreo, foi recolhido na imprensa especializada como uma estratégia de reinterpretaçom vernácula. Na década de oitenta, o formalismo vivia uma nova época dourada na arquitetura. As formas eram um modo de recuperar a expressom da arquitetura. Mas, frente ao habitual processo inteletual de apropriaçom das formas de arriba abaixo, Campos legitima-o desde abaixo: a escolha formal, para além de um apontamento cultural no processo intelectual do projeto, é só um simples veículo de expressom formal de um projeto em que o ponto central da intervençom era atender as necessidades e a experiência das pessoas usuárias. O que é entom a autenticidade? A reinterpretaçom das formas vernaculares ou o mantimento de uma vida comunitária e a dignidade da esfera reprodutiva? Isto nom deixa de ser simbólico numa das contornas históricas mais visitadas do país, uma contorna petrificada para os fluxos extrativos do turismo.

Em suma, nom é a nossa intençom defender um relativismo absoluto ou renunciar à possibilidade de preservarmos a arquitetura vernacular para o futuro, nem negar o interesse cultural das olhadas contemporâneas ao nosso património vernáculo. Porém, cabe reformularmos o debate desde uma compreensom mais profunda das condiçons materiais do nosso médio e fugir de consideraçons moralizantes. A vivenda galega popular contemporânea revela-se mais autêntica do que qualquer revival. Existe, entom, uma arquitetura vernácula galega hoje?

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