Festival da Poesia no Condado: comunidade(s), experiência militante e imaginação cultural

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A fraqueza dos estudos da cultura na Galiza tem deixado um grande vazio na observação da literatura como fenómeno social. Xian Naia, na ideia de que esse vazio deve ser preenchido, faz uma apresentação e análise de um –já histórico– evento literário impulsado por uma comunidade militante: o Festival de Poesia da SCD do Condado.

O desenvolvimento ainda precário de um campo de estudos da cultura na Galiza faz com que hoje estejam ainda por cartografar muitas das experiências militantes e de pequenas comunidades que, com as análises prévias, poderiam ser ensaiadas noutros espaços do nosso sistema cultural. Esse desenvolvimento precário, especialmente deficitário no âmbito dos estudos culturais focados no literário, ainda submergidos num filologismo que dificulta vias de pesquisa mais inovadoras, contribuem para o escasso seguimento académico de propostas ainda não devidamente consideradas. Os caminhos epistemológicos abertos e objetos de estudo apontados nos trabalhos de Xoán González-Millán, adiado para a sua revisão, são só um exemplo dos vazios nos estudos sobre a cultura na Galiza. Outros trabalhos, como os iniciados na escola de Birmingham por Richard Hoggart em matéria de funções da literatura e da cultura nas camadas populares, parecem também não terem demasiadas adaptações, sem sabermos bem se é por inércia ou ineficácia. Estudar as trajetórias das comunidades militantes, dedicar esforços académicos às experiências acumuladas em movimentos e propostas culturais concretas de autonomia popular, mais definidas no como se fazem as cousas do que no produto final. Um programa estratégico coletivo para documentar a ação social, que conceba necessariamente a cultura como as ferramentas para a organização e o funcionamento da vida, para o fortalecimento da coesão da comunidade.

Quem entendemos a literatura como discurso, como práticas e relações inseridas num contexto histórico, como uma atividade social que depende das condições de produção e circulação, e que está associada a uma visão do mundo (Sapiro, G. Sociología de la literatura, 2016), percebemos o vazio de uma história social da literatura na Galiza. Uma história social que de uma perspetiva sociológica, isto é, racional e empírica, amplie também algumas linhas de pesquisa de tipo social e experimental, com toda a vigilância epistémica que requer e que já foi apontada por autores como Bernard Lahire (¿Para qué sirve la sociología?, 2006, pp 63–89). Isto tem a ver com como as investigadoras decidimos e enfrentamos os objetos de estudo, com a posição que escolhemos a respeito deles, questões tratadas largamente por Bourdieu (El sentido práctico, 2007 e Autoanálisis de un sociólogo, 2006), mas também com ter conta da necessidade de repensar as condições para a produção de conhecimento, os capitais que tiramos e os que somos quem de transferir às comunidades.

Um caso de experiência militante e construção de uma outra proposta de imaginação cultural é o Festival da Poesia no Condado. Por extensão, é claro, também o da Sociedade Cultural e Desportiva do Condado (SCD), que fundada para a organização da vizinhança da comarca, organizou até hoje as 34 edições do Festival (o que abre, para já, alguma questão relativa ao alto grau de legitimidade e incidência da poesia no campo político galego), e que neste ano celebra o seu 50 aniversário de trajetória. Uma trajetória que ainda está por estudar, que cultiva uma ideia da cultura não apenas ligada ao artístico e focada nos tipos de produção, de gestão e de distribuição da mesma. Uma comunidade humana que cria à vez cultura e contracultura (Bourdieu, P. Cuestiones de sociología, 2000, pp 10-19), colocando filtros, necessários para quem se preocupar em introduzir nos modos de fazer cultura mecanismos para não exercer a dominação através da mesma e para ser capaz de pensá-la criticamente. Uma cultura contracultural, com espaço para introduzir as demandas populares da urgência e as da necessidade, que facilite o acesso à politização, que se pareça um pouco ao que alguns entendemos por cultura popular e que em certa forma é uma abstração por vezes dificilmente materializável.

Quando em 2022 comecei a trabalhar na tese sobre O poético e o político no Festival da Poesia no Condado. Funções, repertórios e comunidade(s), reparei no vazio quase total de estudos ao redor dos festivais e encontros de diferente tipo localizados na Galiza. Por outra parte, os trabalhos realizados com algum tipo de análise crítica sobre festivais internacionais de literatura, analisando as influências no campo literário, as relações com o campo editorial criadas no evento, a sua intervenção em processos de monetarização cultural ou de gentrificação dos espaços, parecem não encaixar ou serem radicalmente opostos às dinâmicas criadas no conjunto do Festival que me ocupa. Em qualquer caso e para não atrapalhar apenas na descrição de uma proposta epistemológica dedicada a estudar eventos, espaços, práticas poéticas que transcendem o literário e o formato livro, para o caso galego, colocarei também alguns dados em relação às antologias publicadas pela SCD em cada uma das edições do Festival da Poesia. Um Festival que para além de instituição literária entendo como evento que é à vez manifestação na sua forma, relativamente imprevisível, heterogéneo, uma espécie de efervescência coletiva, em palavras de Durkheim, de ritual de interação com as suas energias emocionais geradas na ação concreta (Collins, R. Cadenas de rituales de interacción, 2009) que só podemos entender fora dela de forma fragmentada.

Quanto aos procedimentos de organização de uma base de dados para a análise das antologias publicadas, contamos a aparição total de 625 poetas, das quais obtemos 325 agentes diferentes, sendo os restantes repetições em diferentes anos. A imensa maioria (308) têm uma concorrência de 1 ou 2 aparições, deixando o maior número de repetições numa minoria de nomes, ligados principalmente a uma posição de relativa centralidade dos campos literário e de produção ideológica das décadas de 80 e 90, mas também reforçados nalguns casos por um achegamento geográfico e mesmo pessoal com agentes da comarca envolvidos na SCD, sendo muitos deles participantes dos espaços culturais e de politização da cidade de Vigo. É o caso de Margarita Ledo com 16 aparições, Xosé M. Álvarez Cáccamo com 13, Bernardino Graña, Darío X. Cabana e o poeta português Viale Moutinho com 12, Manuel María e Xela Arias com 10 repetições, ou X. L. Méndez Ferrín, Marta da Costa e Antón Reixa com 9. Essa tendência a concorrências elevadas de alguns agentes, em comparação com a maior parte dos participantes, modera-se na segunda etapa do Festival, após o paro da sua organização entre os anos 1996 e 2002 incluídos, a partir do qual também é modificado o formato de escolha das poetas participantes e a própria equipa de ativistas organizadora, para além de algumas demandas sociais do novo milénio terem condicionado fortemente o espaço de forças no campo político e militante.

Em relação a isto recolhemos 203 poetas identificados como género masculino e 102 como feminino, aparecendo ademais no conjunto das antologias três coletivos poéticos formados por homens. As distâncias incrementam-se se tomamos o total de aparições de poetas, incluindo as suas repetições, somando assim 436 poetas de género masculino e 188 feminino. Contudo, caso tivermos em conta o paro aludido anteriormente e dividindo os dados do Festival nesses dous grandes blocos pré e após o novo milénio, confirmamos um descenso da distância entre as participações por género, sendo na primeira etapa (de 1981 até 1995) 295 poetas identificados como masculino e 78 como feminino, para passar aos 139 masculinos e 109 femininos da segunda etapa.

Quanto a outros dados relevantes, sublinhamos a afluência de agentes de diferentes sistemas literários, pertencendo a maioria ao sistema literário galego (191 dos 325 totais), fazendo parte 44 do sistema literário português e seguindo, já com menos presença, os do basco (24) e o catalão (18), com ligações e interesses de aparição que bebem das relações de subalternidade no campo político, e de forma discreta mas em qualquer caso significativa devido à irrelevância no conjunto do nosso sistema literário, aparecem poetas dos países africanos de língua oficial portuguesa, assim como representantes da poesia em asturiano ou de outras consideradas nações sem Estado como o caso do Saara. Também se revelam numa primeira análise a participação de agentes de idades na sua maioria entre os 29-39 anos, seguidos pela franja dos 20-29 (anos no momento de participação) sendo apenas 45 as aparições de agentes com mais de 60 anos.

Em boa medida, a posição política da SCD refletiu-se também na sua posição a respeito de uma ortografia mais confluente com o português, sendo adotada a conhecida popularmente como norma AGAL para as suas atividades, entre as que destaca a edição da antologia. É provável que a localização geográfica da comunidade organizadora explique também parte da ideia de um reintegracionismo que podemos dizer intuitivo, alargado, que nem necessariamente se restringe ao ortográfico nem à perspetiva filologizante, mas é ferramenta para a construção de identidades coesas, assentes nalgumas marcas da diferença cultural e materializadas numas lógicas do popular que ficam ainda longe doutros espaços de politização dos campos ativistas na Galiza. Se repararmos nos dados de participação das poetas, a aparição de reintegracionistas é menor no conjunto, mas como no caso do género citado anteriormente, a tendência na segunda etapa do Festival é ascendente, se bem não chega a 30%, ao mesmo tempo que aumenta também a participação de agentes internacionais. Não é logo que não existam limites ou fronteiras na hora de programar, é que são outras, ensaiadas para a comunidade que se pensa que, como o trem chu-chu que anuncia o Festival o dia da festa de Salvaterra para Monção, vai além do Estado e traduz a fronteira em contacto.

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