O espaço de negociação política e estética que oferece a música de tradição oral está a ser um lugar fértil para o desafio à cisheteronorma através de novas propostas estéticas e sonoras. sér vales e Alicia Pajón analisam o processo à procura de compreender as potencialidades e limites desta transformação.
Ninguém que tenha interesse na música galega ficará surprese se dissermos que o campo «tradicional» da nossa música tem experimentado nos últimos anos uma notável transformação. É pertinente, pois, considerar esta mudança de uma perspetiva estética e política que nos permita elucidar os elementos que a caracterizam e os agentes e dispositivos e estratégias que a mobilizam. A nossa hipótese terá como protagonista uma determinada orientação neste conjunto de movimentos transformadores, a saber: o que podemos chamar de uma viragem queer ou queerização da música galega de tradição oral.
O tradicional tem funcionado historicamente na Galiza como um espaço de reificação de estereótipos nacionais e de género, em que a música tem sido situada como o locus privilegiado da autêntica essência nacional. Mesmo nas perspetivas aparentemente renovadoras da música galega de tradição oral é comum o emprego de uma noção ahistórica e aproblemática do tradicional que ainda participa do processo autofolclorizante em que se situam os discursos musicais galegos desde as suas primeiras manifestações iluministas e românticas. A viragem queer da música tradicional galega, se bem não pode escapar completamente a estas dinâmicas, tem demonstrado potencialidades para introduzir distorções que compliquem as homogeneidades assumidas neste campo de produção cultural.
O tradicional na música galega
Em primeiro lugar é relevante fazer uma breve reflexão sobre a categoria de música tradicional e sobre o seu papel no processo de construção cultural da identidade nacional galega. O folclorismo e as suas estratégias de patrimonialização de uma série de manifestações musicais e coreográficas transmitidas através da tradição oral permeiam a nossa ideia de música [tradicional] galega mesmo a partir de perspetivas, metodologias e posições políticas contraditórias. Este processo – que podemos situar historicamente entre o iluminismo e a segunda metade do século XX, com consequências evidentes nas nossas práticas musicais atuais – tem implicado a fixação de um conjunto de categorias musicais padronizadas (i.e. moinheira, alalá, jota) e a exclusão sistemática de elementos considerados espúrios ou «pouco tradicionais», na procura de satisfazer uma noção preexistente de autenticidade e primitivismo que, com algumas variações, subsiste ainda hoje nos discursos musicais do dito campo tradicional.

A folclorização da cultura expressiva de matriz rural, instrumentalizada primeiro pelo espaço político galeguista – desde Murguía até Bal y Gay, como tem explorado Luís Costa no seu texto Música e galeguismo (2001) – consolidou-se no franquismo através da ação homogeneizadora e normativa dos Coros y Danzas de la Sección Femenina – um processo estudado por Beatriz Busto no seu livro Um país ‘a la gallega’ (2021) – e pelo papel de fixação e legitimação textual que teve a publicação dos cancioneiros de Casto Sampedro e de Torner e Bal y Gay, editados por Filgueira Valverde com o financiamento da Fundación Barrié. O fim do franquismo não operou grandes mudanças no campo da música tradicional galega, sendo que o paradigma folclorista continuou a ser dominante metodológica e esteticamente através da proliferação de grupos e associações folclóricas e de projetos de recolha e conservação do património musical galego – dentre os quais sobressai ostensivamente o de Schubarth e Santamarina, novamente publicado com o auspício económico da Fundación Barrié. Não pretendemos cá fazer uma denúncia do folclorismo mas uma brevíssima – e por sinal, insuficiente – caracterização do seu domínio ideológico e metodológico no que diz respeito à consideração erudita da música galega de tradição oral.
Entretanto, os tentáculos do tradicional no campo musical galego começaram a se dispersar e diversificar no processo de profissionalização e consolidação da música popular na Galiza. Nas décadas de 70 e 80 florescem inúmeros grupos e compositories que fazem do material tradicional uma fonte de inspiração e pesquisa para projetos criativos que fugiam, mais ou menos conscientemente, da recriação folclórica e da representação estereotipada dum passado ahistórico – embora sem consegui-lo de modo pleno. É assim que se produz a associação da música tradicional galega com o folk – enquanto etiqueta comercial que a assimila com outras músicas existentes pelo mundo afora – e a sua subsequente aproximação do campo da música céltica. Logo após o sucesso comercial internacional da world music na década de 90 – um conceito de origem académica e cariz sub-repticiamente colonial que encontrou desenvolvimento nas indústrias musicais do fim do milénio – a música popular galega de inspiração tradicional chegou ao século XXI com uma diversidade de abordagens estéticas e tendo deixado a sua pegada em praticamente todos os géneros e expressões musicais do país. O notório decaimento da sua popularidade nos primeiros anos 2000 está sendo agora claramente revertido com o aumento de propostas e o alargamento do público interessado no trádi nas suas diversas manifestações – de foliadas populares a concertos e festivais de assistência massiva. Neste ponto é imprescindível explorarmos o quem e o como das transformações musicais recentes neste campo tradicional, o que nos permitirá esboçar a proposta de uma leitura queer deste processo de renovação.
De viragens e orientações: Mercedes Peón e a queerização da música tradicional galega
As potencialidades discursivas e disruptivas da música funcionam como um elemento profundamente político no seu modo de nomear, negociar e construir espaços abrangentes que se possam desprender de noções homogéneas e normativas. Contudo, o potencial emancipador da música não implica necessariamente a sua atualização em realidades transformadoras ou disruptivas a respeito do estado de cousas hegemónico. Neste sentido, resulta sugestiva a analogia possível com a proposta crítica de José Esteban Muñoz no seu livro Cruising Utopia (2009), a partir da sua já clássica afirmação de que «o queer ainda não chegou […] mas podemos senti-lo como a cálida iluminação de um horizonte imbuído de potencialidade».
De volta na música, Tess Slominski em Queer as trad (2022) assinala a forma em que categorias como tradicional ou galega (no seu caso, irlandesa), podem sugerir homogeneidades que obscureçam as complexidades e contradições das manifestações da cultura expressiva, reificando no processo os significantes políticos convencionalmente associados com essas noções – que não são, por sinal, precisamente inocentes.
Entendendo o queer como uma posição instável, desafiante da normalidade e normatividade da matriz sexo-género, podemos singularizar a viragem queer da música galega de inspiração tradicional na figura da pandeireteira, compositora, cantora e multi-instrumentista corunhesa Mercedes Peón. O seu álbum Deixaas (2017) pode funcionar como paradigma dessa viragem através de uma proposta que caminha com segurança na aparente tensão entre tradição e vanguarda, com a incorporação de elementos musicais pouco explorados na música galega de inspiração tradicional – como a polirritmia. Peón aprofunda no desafio à normatividade – musical, sexual e de género – que já tinha sido uma constante na sua trajetória, e tem citado Paul B. Preciado como um dos referentes teóricos por trás de músicas como «Ela propón» – um berro de raiva e amargura pelos futuros não sempre possíveis («Sin tensión no hay tranversalidad sino una pirámide», El Salto, 8-6-2018). Parece, então, que a viragem queer da nossa música tradicional é um universo potencial futuro, consciente, ao mesmo tempo, de não conseguir derrotar as dinâmicas de opressão que enfrenta no presente que habita – mas que, em qualquer caso, se resiste a aceitar a derrota como a própria Peón aponta («A resistencia á derrota de Mercedes Peón, Mónica de Nut e Ana García», Galicia Confidencial, 14-7-2017).
Com esta dicotomia presente, a artista lançou este álbum numa altura em que a sua carreira na música tradicional estava plenamente consolidada: em ativo desde os anos 90, ela mesma pode representar o trânsito desde os dias da world music até à chegada de novas estéticas de vocação renovadora que permitem repensar o tradicional introduzindo torções que fazem possível pôr no centro corpos e subjetividades antes excluídas – os «atores monstruosos da sociedade», por dizê-lo ainda com Preciado através do seu escrito Eu sou o monstro que vos fala (2020). Todavia, nesse trânsito é possível reconhecer a figura de Mercedes Peón como um constante elemento de distorção e desconforto com quaisquer estereótipos estéticos e políticos da tradição musical galega – embora recentemente tenhamos visto quem reclama para si a paternidade da sua «renovação» sem reconhecer a genealogia sobre a qual esta se assenta.
Para uma Galiza agrocuir: presente e futuro da música popular galega
Esta viragem, que temos personificado em Peón, está hoje a crescer e a fazer mais profunda a fenda aberta nos estereótipos nacionais e de género associados à música tradicional galega. Uma fenda que se pode tornar num caminho fértil e pela qual transitam propostas como as d’O Rabelo, Mondra, Berto, as Fillas de Cassandra ou as Tanxugueiras – que, aliás, recolhem também os frutos do sucesso entre o público nacional (e não só). A mudança narrativa e discursiva é operada por elementos disruptivos para a tradição folclorizada, enquanto se introduzem nas suas propostas estéticas e sonoras elementos alheios, ou pelo menos estranhos à sua imagem estereotipada.
Aparece a vontade de quebrar com a ideia de que «la música en gallego son gaitas y panderetas», como o próprio Berto diz em entrevistas promocionais («Se está rompiendo la idea de que la música en gallego son solo gaitas y panderetas», Shangay, 10-1-2023) – embora esta «quebra» não seja de todo nova e continue, num certo sentido, a reificar os termos da representação autofolclorizante que tão boa acolhida tem nas indústrias musicais com sede em Madrid. As estéticas «renovadas», os desafios à normatividade, o sampling, o autotune e as batidas do electropop, da folktronica e da música eletrónica de dança aparecem como elementos desestabilizantes e enriquecedores da tradição musical – em concorrência com formas alternativas de expressão na componente textual das músicas e na apresentação física des artistas (i.e. a dança, a indumentária ou a maquilhagem). Discursos a partir dos quais confrontar a cisheteronorma ainda dominante e procurar a construção de espaços (mais) seguros em que se dissolvam as distinções entre centro e periferia, no musical e também no sexual. Uma tentativa de mudança de paradigma que permite imaginar presentes viáveis e futuros desejáveis, materializados em projetos como o Festival Agrocuir da Ulloa, uma experiência coletiva de descentramento dos estereótipos folclorizantes da tradição cultural galega, nomeadamente através da música, do convívio e da abertura de espaços de encontro e solidariedade queer no rural.
Resulta particularmente interessante que tenha sido na música tradicional – um campo, como dissemos, habitualmente frutífero na reprodução de estereótipos nacionais e de género – onde o desafio ao convencionalmente aceite como parte da identidade galega tenha achado um solo fértil para se desenvolver. Porém, não seria politicamente sensato abandonarmos uma certa cautela e uma certa suspeita perante posições triunfalistas sobre a situação da cultura galega (e em galego), num contexto em que o sucesso comercial e estético de propostas explicitamente transformadoras aparece como nova norma no campo da nossa música popular. A admissão e a difusão destas mudanças com o suporte de uma parte da estrutura industrial da música dita independente no estado espanhol (e no mundo afora) pode facilmente tornar o disruptivo e o não-normativo em mero gesto, assimilar a (aparência de) diferença como parte de uma mesmidade devoradora subordinada ao capital e aos seus significantes abstratos e vazios. Entretanto, viremos.