E agora que recolhestes…? O folclore do Dia das Letras e a retaguarda da cultura galega contemporânea

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As cantareiras e a poesia popular oral protagonizam este ano a homenagem da RAG pelas Letras Galegas. sér vales explora a instrumentalização histórica do “folclore” no processo de construção cultural da nação e a sobrevivência do discurso folclorístico e das suas premissas essencialistas nas representações do galeguismo institucional contemporâneo.

A Real Academia Galega homenageia Adolfina e Rosa Casás Rama, Eva Castiñeira Santos, Teresa García Prieto, Prudencia e Asunción Garrido Ameijende, e Manuela Lema Villar no Dia das Letras Galegas de 2025. A escolha das cantareiras constitui uma feliz novidade no contexto da cultura institucional galega contemporânea. Entretanto, também fornece uma oportunidade para uma exploração crítica das relações históricas entre as dinâmicas de criação de uma cultura nacional por parte das elites intelectuais galeguistas e as práticas expressivas de matriz rural abrangidas por noções de “folclore” ou “música tradicional galega”.

Do Folk-Lore à Academia – da Academia ao “folclore”

Em 29 de dezembro de 1883, o número 11 da rua Tabernas da Corunha acolheu a reunião fundacional da sociedade Folk-Lore Gallego, presidida por Emilia Pardo Bazán. Face ao percebido desaparecimento das tradições populares sob a “mano niveladora de la civilización”, propunha-se recolher materiais culturais de matriz rural oralmente transmitidos: “no con el fin de poner otra vez en uso lo que cayó en desuso […] sino con el de archivarlos, evitar su total desaparición, conservar su memoria y formar con ellos, por decirlo así, un museo universal, donde puedan estudiar los doctos la historia completa del pasado” — como dizia a condessa no seu discurso inaugural (1/2/1884).

Este ano a Real Academia Galega homenageia sete mulheres, autoras e transmissoras de um conjunto de práticas expressivas enquadradas no conceito de “folclore”, definido, na apresentação oficial da celebração — “Da tradición á vanguarda” (2025), de Ana Boullón — como o “conxunto de tradicións, costumes e manifestacións artísticas dun pobo”. A seguir, no que poderia ser uma emenda ao Folk-Lore Gallego 141 anos depois, acrescenta-se que este “non debe ser contemplado de forma arqueolóxica”. Apesar de as obras na sua sede impedirem cá um exercício de circularidade poética, a insistência na noção de folclore e na sua definição merecem um destaque, porquanto ilustram a perdurabilidade de alguns dos elementos-chave do programa tardo-romântico do Rexurdimento na intelectualidade galega do presente.

A etnografia foi uma das ferramentas centrais do processo de construção e legitimação da identidade galega contemporânea. O Folk-Lore Gallego visava coordenar uma série de esforços voluntaristas através da integração das elites intelectuais galegas numa empreitada nacional (leia-se, espanhola) de construção identitária através do dispositivo folclórico. Aliás, a sociedade constituiu um dos antecedentes mais imediatos da atual Academia, embora o confronto entre Pardo Bazán e Murguía impedisse que o fosse realmente, como explorou Ana Romero no artigo “Folk-lore Gallego e a Academia Gallega que non puido ser” (2023).

No pós-franquismo a Academia abandonou a etnografia e centrou os seus esforços na conquista da auctoritas linguística. A liturgia anual das Letras reflete o seu lugar de destaque no projeto cultural do galeguismo institucional, uma vez consagrada a abdicação do governo autonómico das suas funções de promoção da cultura galega. O que num outro contexto seria o vestígio de uma cultura erudita extraordinariamente necrófila tornou-se, na Galiza autonómica, no principal instrumento de construção de um cânone literário nacional. 

A luta da RAG por manter o seu lugar ao leme do galeguismo institucional tem requerido também navegar as transformações do campo cultural que pretende servir, através duma estratégia de reconhecimentos com maior impacto social. Em 2025 as Letras confirmam a exceção como regra, superando dum só golpe o número de mulheres indicadas nas 62 edições precedentes e repetindo a homenagem coletiva, depois dos “trobadores da ría de Vigo” (1998) — por sinal, outro dos mitos sonoros da identidade galega.

Colher e semear: para uma futura etnomusicologia galega

O estudo da música de matriz rural na Galiza foi dominado, na maior parte da sua história, pela “recolhida” e o “cancioneiro” enquanto dispositivos de seleção, fixação, salvaguarda e transmissão do que se entendeu como parte fundamental do património cultural tradicional — e, em consequência, da identidade (ou da ‘alma’) — do povo galego.

Número 11 da rua Tabernas da Corunha

O corpus ‘folclórico’ galego é denso e conta com contributos extraordinários; contudo, careceu historicamente da interpretação das práticas expressivas como meio de (re)produção de significados e relações sociais, consolidada como prática etnomusicológica a partir de 1950. A fugaz (e mitologizada) passagem de Alan Lomax e Jeanette Bell pela Galiza em 1952 produziu um material fonográfico de muito interesse — não obstante a sua questionável metodologia —, mas o projeto editorial resultante nunca foi concretizado. Por sua vez, o exímio trabalho de Dorothé Schubarth e Antón Santamarina oferece uma compilação e classificação musical e poética das práticas expressivas de matriz rural patentes entre 1978 e 1983. A sua rigorosa metodologia musicológica e filológica é, todavia, devedora do folclorismo europeu de inícios do século passado, de orientação substancialmente taxonómica e evolucionista. O Cancioneiro popular galego (1984–1995) pretendia expressamente registar um “herdo musical arcaico a salvo de influencia de fóra” — embora, como é sabido, acabasse por fazer muito mais.

Eis que o paradigma de produção de conhecimento da moderna etnomusicologia não tem sido introduzido de forma sistemática no panorama científico galego. A estrutura das instituições académicas do país ainda não incorporou o pequeno número de profissionais existente, e apenas se pode qualificar de incipiente a sua repercussão no sistema editorial e no debate público da intelectualidade galeguista, por demais filologizada. Esta ausência entende-se melhor à luz do primado do folclorismo como expressão metodológica da busca de uma raiz musical para o projeto cultural galeguista. 

O povo canta, a nação escreve: o folclorismo como modelo epistemológico da galeguidade

O reconhecimento da Academia às cantareiras permite uma leitura da tentativa da elite institucional da cultura galega em constituir-se como vanguarda do galeguismo contemporâneo — enquanto confirma a sua incapacidade em ser mais do que a sua retaguarda. Legitima a natureza literária da produção poética oral para além do seu uso como modelo estilístico para a poesia culta. Ademais, mesmo que entendidas como personificações da criação anónima e coletiva que se atribui ao material tradicional, identifica um grupo de mulheres, trabalhadoras rurais, sem o capital intelectual e cultural conferido pelo acesso à literacia e às formas de produção artística dominantes, como sujeitos detentores de agência criativa, situados no tempo e no espaço e com uma atividade passível de interpretação. A homenagem vai ao encontro do trabalho encetado, entre outres, por Beatriz Busto, nos livros Pandereteiras de Mens (2021), Um país a la gallega (2021) e Agora vou cantar eu (2025), e Xulia Feixoo, em Maruxa das Cortellas (2017) e Concha do Canizo (2021).

Porém, o aparelho discursivo à volta da homenagem corre o risco de reinscrever as suas protagonistas e as suas manifestações artísticas no paradigma folclorístico enquanto forma de reificação das relações sociais e das condições materiais em que se (re)produzem. Em concordância com as narrativas “campesinistas” analisadas por Antom Santos no livro Terra a nossa! Discurso e identidade agrária na Galiza moderna, 1875-1936 (2024), o folclorismo apresenta uma série de contradições que, de forma geral, não se esforça em resolver. A sociedade rural galega dos séculos XIX e XX afigura-se como um passado ahistórico atravessado apenas pela desintegração progressiva das estruturas sociais e comportamentos expressivos ‘tradicionais’. Esta ahistoricidade conduz, paradoxalmente, à aplicação de categorias de interpretação historicistas. Um exemplo eloquente é a consideração generalizada de as melodias mais ‘arcaicas’ serem aquelas mais ‘simples’, de âmbito mais estreito, ou com uma organização modal (e não tonal-funcional) das relações entre sons.

O papel de transmissão da cultura e a língua é outorgado às mulheres à custa de uma atribuição de ingenuidade sobre a sua própria agência na criação poético-musical e no processo de reprodução social como um todo. Reifica-se assim uma divisão sexual do trabalho musical que reafirma o discurso feminizador dominante no folclorismo franquista, enquanto sugere uma noção inerente de resistência e desordem nas práticas expressivas protagonizadas por mulheres. Por sua vez, interpreta-se a oralidade do processo como uma garantia da sua autenticidade, ao passo que se pressupõem espúrios alguns elementos do material transmitido — como a presença do espanhol nas coplas, estudada por José L. Forneiro no artigo “Presença da língua castelhana na literatura popular galega” (2005), ou a incorporação de formas musicais ‘alheias’ à tradição galega, que analisou Luís Costa em “Las rumbas olvidadas” (2004). O povo é quem canta – mas nem sempre canta bem.

A tradição, embora descrita como resultado de um processo de constante transformação, é caracterizada como um substrato cultural estável, modificado apenas pela influência externa, que se julga negativa como resultado da mudança das condições de reprodução social — i.e. a industrialização, a emigração e o êxodo rural, a influência do ensino obrigatório, os meios de comunicação de massa ou as indústrias da música. Contrariamente, aparece como positiva em contacto com uma noção neutralizada de vanguarda, representada pela transformação criativa do material tradicional através dos dispositivos estéticos e produtivos da música popular contemporânea e associada à popularidade e consolidação do valor de uso do folclore como estilema adequado para o seu consumo enquanto produto cultural — em lugar de qualquer transformação formal ou exploração (auto)crítica das condições de produção artística. Trata-se de um processo integrado numa tendência global que permite leituras diversas, a saber:

(1) expressão da necessidade social de construir uma cultura nacional autónoma, a partir de materiais sancionados por uma ideia de tradição que permite a sua remistura com técnicas e estéticas consideradas contemporâneas — aggiornamento que pretende manter a vitalidade das práticas expressivas capturando ao mesmo tempo a atenção do mercado e do público, em linha com as dinâmicas produtivas da cultura de massas e com as orientações estéticas do campo galeguista lato sensu;

(2) apelação ao passado rural de uma boa parte da população e, portanto, evocação nostálgica das formas de vida e de lazer da classe camponesa galega dos últimos dous séculos, que apaga e/ou estetiza as suas condições de sujeição material;

(3) transformação das “condições de audibilidade” hegemónicas das práticas expressivas tradicionais na Galiza, mobilizada (ou não) pela “viragem queer” da música de inspiração tradicional (já explorada neste Caseto), que possa vir a deslocar “la gran división entre tradición y modernidad, entre feminidad y masculinidad, a través de la que se han venido instaurando los regímenes de audibilidad al interior de la modernidad postfranquista”, como aponta Llorián García-Flórez no artigo “Auralidades queer” (2025, no prelo).

Não pretendo aqui exaurir as possibilidades interpretativas da música galega de inspiração tradicional do último século. A sorte destas notas só poderá ser decidida por aquilo que es agentes do campo cultural galego venham coletivamente a construir. Igual do que a ação da Academia, a minha análise é apenas uma resposta à intensificação da dinâmica de reapropriação cultural do material musical tradicional como fonte para a construção de uma cultura popular autónoma, cujo sucesso dependerá da possibilidade de um futuro menos pior. Contudo, considero essencial a crítica como ferramenta de acerto de contas com uma série de estratégias institucionais de construção cultural da galeguidade alicerçadas em pressupostos implicitamente essencialistas, que assumem o projeto folclorístico de forma indiscriminada, arriscando a perpetuação dos seus elementos mais reacionários sob a máscara da vanguarda.

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