Cinema e novos consensos estatais na Transição Ecológica: ‘As bestas’ (2022) e os significados políticos da discapacidade

Helena (6)

A díade discapacidade-ruralidade é recorrente nas representações literárias e cinematográficas da chamada Espanha negra. Mas quais podem ser os significados ideológicos desse tropo em um novo regime climático em que o meio rural galego é chamado a desempenhar um novo papel como provedor de recursos energéticos? Helena Miguélez-Carballeira tenta responder a esta questão através de uma análise do filme As bestas, de Rodrigo Sorogoyen.

Graças aos estudos culturais sobre o período «desarrollista» espanhol, que incluem os trabalhos de Nathan E. Richardson, Justin Crumbaugh e a muito aguardada monografia de Ana Fernández Cebrián, Fables of Development: Capitalism and Social Imaginaries in Spain (1950–1967), sabemos que o período de crescimento da economia espanhola compreendido entre 1959 e 1974 foi acompanhado de uma comprida estratégia cultural. Esta tinha por objetivo o desprestígio das populações rurais já em profundo declive, e por emblema o arquétipo do «paleto», o cândido homem com boina cujas experiências de deslocamento para a cidade causava «hilaridade e desapego», como diz Aintzane Rincón no seu livro Representaciones de género en el cine español (1939–1982), numa audiência envergonhada em massa pelas suas origens rurais. Encarreirava-se assim, pela via do emergente cinema de massas espanhol, a campanha de depreciação das práticas económico-culturais associadas à vida rural e das subjetividades produzidas por esta, arraigadas em seculares consensos comunitários. E substanciava-se, em paralelo, a figura em ascensão do pequeno proprietário espanhol, pós-rural, proletário e castelhano-falante, que deixava atrás, como quem muda de pele, a experiência e identidade associadas à vida camponesa, agora só relembrada como «miséria». 

A associação entre miséria e ruralidade tem uma longa tradição na história cultural moderna espanhola. Dos apontamentos de um Gustavo Adolfo Bécquer a olhar com assombro de excursionista as rudes vidas dos povos ao pé do Moncayo aragonês em Cartas desde mi celda (1864) até à recriação naturalista das populações do interior rural ouresano que fez Emilia Pardo Bazán em El cisne de Vilamorta (1885), Los pazos de Ulloa (1886) e La madre naturaleza (1887), a transição do romantismo ao realismo naturalista literário espanhol ficou sustentada na desvalorização de um rural popular e bárbaro face à civilização burguesa urbana, ideologia cuja funcionalidade para um emergente liberalismo centralista madrileno fica por desemaranhar. No século XX, a desvalorização mudou em esperpento, enquanto os espaços rurais começavam a ser representados como âmbitos da degeneração, onde morava o detrito indigerível para a pólis. O constante recurso à representação de discapacidades grotescas rurais na tradição representacional da «Espanha negra» durante o século XX desempenhou uma dupla função simbólica: por um lado, como metáfora do isolamento da vida rural espanhola vista de a perspetiva metropolitana, como no documentário Las Hurdes (1933) de Luis Buñuel ou o romance La familia de Pascual Duarte (1942) de Camilo José Cela; e, por outro, como uma «prótese narrativa» (o conceito bebe do trabalho seminal de Snyder e Mitchell) para veicular eticamente a violência do subalterno diante do poder. Este era o caso de Los santos inocentes (1981) de Miguel Delibes, publicada já no meio da Transición espanhola pós-franquista, onde é o personagem com deficiência intelectual, Azarías, aquele que mata o «señorito» e com o que o público empatiza.

Mas a tradição espanhola para a representação de discapacidades rurais grotescas (e não muito politicamente corretas de uma perspetiva internacional) tornou-se pedra no caminho da internacionalização de um novo cinema espanhol, delineada pelo primeiro governo PSOE através da Lei Miró (1984). Entre os produtos estrela desta lei, que procurava a estilização elitista de um novo cinema nacional espanhol afastado dos formatos populares, ficavam as adaptações fílmicas de textos literários. Para levar a cabo tal campanha de modernização, que homologasse a Espanha pós-franquista como cultura europeia de pleno direito, adaptações ao cinema como Los santos inocentes (1984) gozaram de uma importância estratégica. Cumpria urgentemente apagar o rastro buñueliano, tremendista e tragicômico, que recorria à representação da deficiência intelectual ou física como um símbolo da Espanha rural, pois estava em jogo demonstrar que a Espanha pós-franquista concordava já com os valores do progresso e da modernidade europeus –adotando simultaneamente um novo consenso sobre o modelo médico para a discapacidade. É por este motivo que na adaptação cinematográfica de Mario Camus, já inserida na lógica dos novos consensos estatais pós-franco, as discapacidades simbólicas da «Niña Chica» e de Azarías recebem uma coda narrativa. No filme, a pobre menina morre e Azarías é internado num hospital psiquiátrico onde é cuidadosamente atendido. Estas mudanças a respeito do texto literário ajudaram a transmitir uma imagem da Espanha pós-franquista como uma sociedade mais moderna e produtiva, onde os vestígios de uma vida rural feudal, atrasada e atravessada por uma violência estrutural contra os mais débeis já é cousa do passado.

Gostaria de sugerir que a interpretação crítica do filme As bestas (2022) de Rodrigo Sorogoyen, um filme que recebeu uma ajuda de um milhão de euros através do programa de apoio a projetos do Ministerio de Cultura y Deporte espanhol em 2021, requer uma consideração similar a respeito das políticas culturais governamentais, num momento em que a relação entre recursos naturais e Estado centralista precisa de uma nova metanarrativa sobre o rural. Proponho pensar que a inegável irrupção, tanto no campo literário espanhol como no cinema e nos média, de temáticas rurais fica determinada por um momento de grandes mudanças históricas chamadas a reconfigurar os usos do rural na Espanha, diante de um cenário de transição energética acelerada. O conglomerado discursivo associado à «España vacía» semelha estar a operar já como essa necessária nova metanarrativa estatal sobre o rural, num contexto pós-covid, pós-global e multipolar (isto é, necessariamente renacionalizado). 

Mais uma vez, o tropo da discapacidade rural violenta erige-se em estratégia central para veicular emocionalmente este novo quadro hegemónico, onde a figura do «paleto» deve ser relocalizada nos lugares ainda não inteiramente capturados pelas lógicas extrativas estatais, isto é, onde aninham modos de resistência política organizada contra elas, como é o caso da Galiza. Em Los santos inocentes, a discapacidade intelectual do Azarías ficava alinhada com os valores do apego à natureza e da sensibilidade ecológica, posicionando o seu ato final de violência como um gesto de autodefesa contra um poder explorador com o qual o público pode se identificar através da emoção da compaixão. Contrariamente, a discapacidade rural violenta de Loren Anta em As bestas funciona como um símbolo do refratário: um resquício inútil do atávico que está a impedir a nossa transição para um futuro mais sustentável e inclusivo. No filme, o modelo desse novo ecologismo sustentável é representado pelo casal francês, por oposição à tríade discapacidade-ruralidade-violência. Funciona esta como uma marca de atraso associada ao mundo rural galego, que fica já ilegível no novo quadro para as políticas regeneradoras de um rural globalizado. 

Em As bestas é o personagem de Antoine quem é colocado como o objeto legítimo da nossa compaixão, e não (como no caso do imaginário ecológico antifranquista delibesiano) o personagem com discapacidade intelectual que executa o ato violento final. Durante o filme, o espectador participa do esforço incansável de Antoine e Marie por conseguirem manter a sua horta e poderem viver dos seus frutos, que comercializam com sucesso nas feiras locais. Intercalando estas cenas (e outras onde vemos o casal francês a desfrutar de momentos de lazer e descanso), as figuras dos nativos galegos, os irmãos Xan e Loren Anta, surgem como o elemento intransigente que bloqueia as novas formas de progresso que, segundo as expectativas mais otimistas de Antoine, poderiam mais uma vez tornar a vila um lugar atraente para o pessoal forâneo viver. Dessa forma, o filme dialoga com o problema do despovoamento rural (o leitmotiv nuclear da «España vacía») e coloca no horizonte de suas possíveis soluções o projeto de restauração de casas rurais que Antoine e Marie parecem estar a realizar de maneira altruísta.

O grande obstáculo a este projeto de regeneração (e repovoamento) rural são os próprios habitantes nativos galegos. Xan e Loren (além da mãe, com quem moram) representam os estertores de uma sociedade rural galega que simultaneamente assimilou e sofreu a ideologia do progresso associada à política agrária franquista. O irmão mais velho, o Xan, compreende que a sua é a condição do despossuído depois de décadas de marginalização e desprezo, daí o seu profundo ódio por Antoine, um professor francês cuja largueza económica lhe permite «jogar às granjas», enquanto os Anta tiveram que ficar à mercê de transformações socioeconómicas e territoriais em que nunca puderam incidir como sujeitos políticos de pleno direito. Que Antoine detenha, em pé de igualdade com o Xan, o mesmo direito de voto nos processos de tomada de decisão sobre os novos usos energéticos dos montes comunais constitui a última das afrontas históricas que está disposto a permitir para si e para a sua família. O seu irmão mais novo e discapacitado intelectual é, portanto, o seu protegido. Mas Loren fica uma presença sinistra e abjeta ao longo do filme, com a que o público dificilmente empatiza, nem sequer através da emoção cultural da compaixão. O seu olhar perdido acompanha quase todas as cenas em que Xan e Antoine interagem, pairando sobre as posições antagónicas que representam, como prenúncio de um desenlace violento que contribui para reforçar a sua polarização em termos éticos.


A discapacidade rural violenta simbolizada por Loren Anta em As bestas funciona, portanto, como um dispositivo de significação que opera simbolicamente num sentido duplo. Por um lado, situa o filme de Sorogoyen na tradição do cinema transnacional espanhol que, de Buñuel a Camus, recorreu ao uso de personagens com discapacidade intelectual e física como marca diferencial da Espanha profunda, ou seja, da España negra. No entanto, num novo quadro de disputa por recursos e territórios rurais na Espanha durante a Transição Energética, essa deficiência rural grotesca é deslocada em As bestas para uma nova geografia periférica, onde ainda existem populações historicamente despossuídas que exigem um papel político ativo face o neoextrativismo energético. Contrariamente à lógica simbólica da discapacidade no personagem do Azarías em Los santos inocentes, a discapacidade intelectual de Loren Anta não parece funcionar como geradora de empatia para com um sujeito histórico que não é senão o sujeito rural galego.

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