Neste artigo, o investigador em educação ambiental Júlio Conde aborda as linhas discursivas necessárias para tirar o véu da narrativa dominante da transição energética, reivindicando um questionamento das relações de produção e consumo que estruturam as sociedades contemporâneas no capitalismo de livre mercado.
«A democracia burguesa é uma democracia feita de frases pomposas, de expressons altissonantes, de promessas grandiloquentes […] mas, na realidade, dissimula […] a falta de liberdade e de igualdade dos trabalhadores e explorados».
Lénine (1919), O poder soviético e a situaçom da mulher.
O pomposo e altissonante mantra do desenvolvimento sustentável, segundo o qual o crescimento económico sustido é compatível com um uso racional dos recursos da Terra, é esmagadoramente hegemónico num momento histórico em que as consequências da mudança climática antropogénica começam a se manifestar de forma mais que evidente, após décadas de evidências científicas incontestáveis que apontavam a atividade humana como a sua principal causa.
Neste contexto, a transiçom energética é ponta de lança de um desenvolvimento sustentável no qual as chamadas energias renováveis —poderíamos debater se o único requisito dumha tecnologia para ser considerada ‘renovável’ é empregar umha ‘fonte renovável’— posicionam-se como umha sorte de panaceia para satisfazer as necessidades energéticas do capitalismo de livre mercado sem a emissom de gases de efeito estufa.
A transiçom energética no capitalismo
Sem entrar a valorar o potencial tecnológico das renováveis para substituir por completo as tecnologias de combustom e sustentar o atual sistema de produçom e consumo, poderíamos afirmar que existe um consenso bastante amplo em que a era dos combustíveis fósseis está a chegar ao seu fim, virando o rumo dos estados industrializados cara a umha inevitável diversificaçom do seu mix energético.
Este consenso alicerça-se em três suposiçons fundamentais —tratadas como axiomas e raramente debatidas— que configuram a lógica dominante da transiçom energética. Em primeiro lugar, assume-se umha visom positivista do progresso humano, segundo a qual a evoluçom tecnológica deve seguir avançando de forma linear. Em segundo lugar, aceita-se que o consumo energético das nossas sociedades deve ser mantido, com o fim de assegurar um crescimento económico sustido que garanta a estabilidade do sistema. Por último, e consequência direta da anterior, parte-se do princípio de que o capitalismo seria o sistema econômico mais adequado para liderar essa transiçom global.
Do mesmo modo que o conceito de desenvolvimento sustentável foi modelado polas instituiçons do establishment capitalista como umha ferramenta para a sua própria sobrevivência diante das potenciais consequências da crise ecológica, a narrativa da transiçom energética cumpre a mesma funçom de preservaçom dos interesses do capital ante a previsível mingua na taxa de extraçom dos combustíveis fosseis.
Em consequência, a transiçom energética é apresentada como um processo inevitável no devir do progresso humano, centrado exclusivamente num problema tecnológico em que apenas se substitui as fontes de energia empregadas nas últimas décadas. Mesmo os setores negacionistas, frequentemente reduzidos a meros opositores do progresso, desempenham um papel estratégico na defensa do statu quo ao alimentarem o medo sobre os impactos sociais e econômicos das possíveis mudanças, ajudando a desviar o debate de questons estruturais e, portanto, consolidando umha ideia de transiçom que perpetua o modelo capitalista.

Ainda que no debate social e académico coexistem outras concepçons críticas (ecossocialistas, decrescentristas etc.), a transiçom energética que visiona o sistema capitalista nom questiona as bases estruturais de um sistema que se sustenta na desigualdade e na destruiçom ambiental. Além disso, cria novas formas de exploraçom, particularmente através do controle de minerais essenciais para as tecnologias renováveis, que reforçam as relaçons de dependência e aprofundam nas hierarquias globais do colonialismo.
Tirando o véu da transiçom energética
No entanto, estas mudanças nom ocorrerám de maneira neutra ou espontânea, mas no marco de relaçons de poder e conflitos sociais. Polo que, em vez de aceitarmos passivamente umha mudança tecnológica dentro do mesmo modelo económico, devemos reivindicar umha transiçom que questione as relaçons de produçom e consumo que estruturam as sociedades contemporâneas. Para abordar a titânica tarefa de tirar o véu da narrativa dominante da transiçom energética, seria necessário trasladar ao debate público —no mínimo— oito eixos discursivos fundamentais que passam por:
- Desconstruir a ilusom da neutralidade da ciência e a tecnologia. Os processos cognoscitivos na ciência estám diretamente afetados pola ideologia e o modo de organizaçom social. Assim sendo, a crença de que as tecnologias renováveis som intrinsecamente benéficas, emascara que o seu desenvolvimento e aplicaçom estám condicionados por interesses econômicos e políticos.
- Transcender a urgência da mudança climática. A crise ambiental nom se limita ao aquecimento global, mas envolve outros processos que evidenciam o ultrapassamento dos limites planetários. A complexidade da crise ambiental entra em contradiçom com a simplicidade do discurso sobre a produçom de eletricidade sem emissões de gases de efeito estufa.
- Refutar as promessas tecno-otimistas que defendem que os avanços científicos —os atuais e os que estám por chegar— resolverám a crise ambiental. O tecno-otimismo oferece a (falsa) esperança de um futuro no qual a inovaçom tecnológica resolverá as externalidades do modo de produçom capitalista, amortecendo a urgência de mudanças sistémicas profundas.
- Questionar o consumo de energia a nível sistêmico. A frequência com que a populaçom recebe mensagens relacionadas com o aforro energético a nível individual contribui para obscurecer, implicitamente, o consumo de energia em todas as etapas dos processos produtivos de bens de consumo, assim como noutras atividades energívoras alheias ao consumo doméstico.
- Reflexionar sobre os usos da energia. Ligado a um questionamento do consumo a nível sistémico, devemos reflexionar também sobre os usos da energia, reconsiderando que parte seria necessária para satisfazer as necessidades básicas da humanidade e que parte está sendo consumida para a reproduçom do capital.
- Combater a ideia de desacoplamento que sugere que o crescimento do PIB pode ser completamente desvinculado das emissons e do uso de recursos naturais. No entanto, evidências empíricas mostram que, embora poda haver um certo desacoplamento relativo, um crescimento econômico contínuo inevitavelmente implica maior extraçom e consumo de energia e materiais.
- Desterrar o relato da pobreza como causa de degradaçom ambiental. A necessidade de crescimento econômico é frequentemente apresentada como soluçom para os impactos negativos do atual modelo produtivo, ignorando que estes som provocados por padrons de consumo desiguais e pola externalizaçom dos impactos ambientais.
- Superar o mito da superabundância energética, que descreve a percepçom errada —sustentada numha confusom entre energia e electricidade— de que a Galiza dispom de recursos energéticos em excesso, garantindo sua autossuficiência e permitindo exportaçons significativas. Embora a Galiza exporte eletricidade, depende fortemente da importaçom de combustíveis fósseis para outros setores fundamentais.
A superaçom da narrativa hegemónica
Sem me atrever a qualificar como completamente ultrapassada a definiçom que durante décadas situou a Galiza como umha naçom colonizada, é inegável que nossa posiçom de periferia do centro capitalista gerou umha realidade complexa. A sociedade galega desfruta de um nível de vida sustentado no acesso a tecnologias avançadas e no consumo massivo de energia. No entanto, os nossos estândares de vida estám alicerçados por relaçons de intercambio assimétricas com estados mais pobres, a través de umha apropriaçom massiva de recursos —materiais, energia, terra e trabalho— e da externalizaçom das cargas ambientais.
Nas sociedades industrializadas, em geral, tanto a extraçom como as infraestruturas de combustíveis fósseis permanecerom invisíveis para a maioria dos cidadans, provocando umha ‘naturalizaçom’ da disponibilidade permanente de energia e o desconhecimento dos seus impactos ambientais associados. Porém, no caso da Galiza estes impactos nom permanecerom completamente invisibilizados. Em base aos relatórios do Balance Enerxético de Galicia —publicados anualmente polo Instituto Enerxético de Galicia— pode-se deduzir que o nosso país estivo historicamente situado num ‘ponto intermédio’ na cadeia de consumo de energia, importando grandes quantidades de energia e, ao mesmo tempo, sendo umha grande exportadora da energia que transforma —bem seja eletricidade ou produtos refinados do petróleo— para prover outros territórios do estado.
Sem embargo, o contexto de incerteza provocado polo fim da era dos combustíveis fosseis provocou umha nova vaga de extrativismo sobre os recursos galegos, tanto materiais quanto energéticos, tornando mais visível umha realidade relativamente oculta. Os movimentos das grandes transnacionais energéticas apontam a que o nosso papel tradicional de transformaçom está a perder importância à custa de assumir um rol de produçom de energia renovável. Em consequência, o uso de energia primaria para aumentar a exportaçom de eletricidade aprofundará no processo de ‘periferizaçom’ da Galiza, abrindo umha janela de oportunidade para que a sociedade galega cobre umha maior consciência das implicaçons globais dum modelo energético que outros povos do mundo suportarom durante séculos.
A resposta do establishment a qualquer resistência contra os projetos de exploraçom de recursos tem sido qualificada como NIMBY (em inglês, acronímico de Not In My Back Yard). No entanto, esta visom simplista ignora dimensons mais profundas da oposiçom popular, que muitas vezes está ligada a um sentimento de vinculaçom estreita com o território e à sua consequente defensa. Neste senso, a Galiza tem uma trajetória histórica marcada por loitas ambientais que se converteram em símbolos de resistência nacional, como as mobilizaçons contra a central nuclear de Jove ou a mina das Encrovas. Hoje, as mobilizaçons contra a implantaçom de macroparques eólicos e contra o projeto da fábrica de celulose da Altri som expressons contemporâneas dessa resistência popular.
Neste contexto, a transiçom energética pode, paradoxalmente, revelar-se como um dos elos fracos do capitalismo. A necessidade de novas infraestruturas energéticas e a crescente insatisfaçom das comunidades afetadas por macroprojetos renováveis poderiam abrir umha fenda no discurso dominante e criar oportunidades para um questionamento mais profundo do modelo energético sobre o qual se estrutura o capitalismo de livre mercado. A possibilidade de rachar esse elo deve passar por nom encarar as loitas contra agressons ambientais como episódios isolados, mas como parte de umha crítica sistémica ao modo de produçom capitalista e à sua dependência estrutural de um crescimento infinito às custas da espoliaçom ambiental.
Portanto, a loita deve ter um horizonte estratégico que inclua a redefiniçom das bases materiais sobre as quais construiremos o nosso futuro coletivo, tanto na Galiza quanto no mundo. Deste modo, devemos perguntar-nos se deixaremos que a transiçom energética continue a aprofundar na lógica predatória do capital ou se pode tornar num ponto de inflexom que avance na construçom de um mundo mais justo e sustentável. A resposta dependerá, em grande medida, da nossa capacidade de articular resistência, construir alternativas e conectar as loitas cara a umha perspetiva global de transformaçom.