É tempo de trabalho coletivo e de pesquisa transdisciplinar para entender o mundo e os nossos mundos. Elias J. Feijo Torres propõe neste artigo que a culturologia, integrando saberes e perspetivas, é um bom caminho sobre umha base laboratorial. Umha nova filologia faz falta para isso, que entenda as narrativas e seja capaz de explicar os seus modos e funcionamentos
Todos os tempos são de encruzilhadas; por vezes, fenómenos eclodem (com maior ou menor trajetória anterior; provavelmente muitos previsíveis) que podem chegar a colocar urgências nas decisões e estas não estarem integradas programaticamente nos agentes e grupos que intervenhem num determinado campo em que se inserem, o que conduz a soluções erradas, parciais ou datadas. Nos campos sociais é frequente assistirmos a essas situações: nos instrumentos utilizados, nos objetivos definidos, nas práticas e implementações feitas.
Proponho atentar agora nos instrumentos. Sabemos que, para muitas pessoas, o mundo avança a velocidades difíceis de acompanhar. O que acontece no mundo da tecnologia, acontece também no das ideias e no das propostas, o que inclui movimentos sociais; a sobreinformação e o correlato da má informação ou da informação enganosa apresentam um vigor tal que é complicado discernir, fazer caso e saber a que(m) fazer caso, o que dificulta a tarefa de entender o mundo, a começar polo mais próximo. Isso obriga a quem desejar ter opinião a pré-situar-se, ideologicamente muitas vezes, para utilizar referências certas que conjugar com o seu espaço social ou nele circular, calculando ou não o risco de quebrar, intencionadamente ou não, o consenso sobre umha matéria dada.
E isso explica que, na era da maior produção de textos e, em geral, de narrativas, a tendência para o esquematismo e a denotação cresçam. É pura impressão, mas parece-me que a linearidade e a unidimensão na interpretação (já não digo, na explicação) de cousas e fenómenos avançam também, o que explica polarizações e tensões fortes no mundo político, social, económico, cultural. Ou no todo e no tudo que todos eles reúnem. O que podemos colocar, sumariamente, num plano denotativo: não tanto no seu sentido semântico primeiro mas, e não paradoxalmente, como alegoria do entendimento linear e isolado de qualquer aspeto da realidade.

Coloquemos esta pergunta: quais os instrumentos (de teoria, método, metodologia, conceitos…) para colaborar na explicação de fenómenos sociais que estamos dando a presentes ou futuras agentes sociais (dumha docente de ensino secundário a um conjunto vizinhal)? O que estamos comunicando, transferindo? Com que e com quem estamos trabalhando? São úteis e adequados ao objetivo de explicar ou dependem de determinada tradição, inércia, interesses (por vezes nem elevados à categoria do consciente, sem auto-reflexividade de por meio)? O sujeito da pergunta, esse nós implícito, é qualquer pessoa ou grupo que tem ou assume a responsabilidade desse trabalho.
Sou crítico com muitas tendências das denominadas Humanidades e prefiro situar-me na órbita do conceito de Ciências Humanas e (ou!) Sociais para definir determinadas atividades vinculadas ou vinculáveis ao que elas comummente significam. Sou das pessoas que critica que muita atividade intelectual sobre fenómenos literários, artísticos, em geral, o que entendemos por produtos culturais, não é mais que paráfrase ou especulação gratuitas, que não produzem novo conhecimento. Passam por labores hermenêuticos e opiniões que, quando se querem ancorar em objetos determinados de estudo, não vão além, no melhor dos casos; noutros, é a projeção do pensamento da parafraseadora utilizando o objeto como pretexto.
Já lidar com os significados dessa informação e dos modos de obtê-la é cousa diferente. Como também enfrentar o trabalho sobre os modos de funcionamento dos fenómenos referidos, a mesma interpretação das suas hierarquias em função dos quadros referenciais e das perguntas, ou a explicação dos fenómenos na sua traçabilidade desembocada nos modos de percepção, uso, consumo e efeitos.
Frente àquela índole denotativa, poderíamos aplicar o conceito de propriedade conotativa às abordagens, holísticas ou analíticas, que procuram compreensões integrais, e (e não contrariamente: por mais que haja comunidades mais viradas para um ou para outro) compreensões tiradas da capacidade de reunir dados e fenómenos e compreendê-los de maneira relacional; o que podemos denominar quadro de situação, dos fenómenos, que os pretende entender do modo mais alargado possível na sua traçabilidade e condicionalismo; quer dizer-se: que saibam ir além de inputs isolados e tenham umha atitude de entendimento que atenda as diversas relações e os diferentes efeitos no e do objeto; procurando, se possível, respostas unificadas e consilientes.
Os procedimentos de Inteligência Artificial são umha das maiores evidências do que pretendo indicar. São um auxiliar formidável, crescentemente formidável (cujo potencial e possibilidades, temo-o, vão ser cada vez mais difíceis de aceder para as pessoas por carência de recursos económicos e materiais para fazê-lo, acrescentando desigualdades) para compreender e explicar fenómenos. Precisamente pola sua extraordinária capacidade de procura, síntese e hierarquização de informação, sempre submetível a revisão. E, precisamente também por isso, evidenciando que eles não são a compreensão, não são, sobretudo, a explicação mas mecanismos ancilares que nos permitem aceder a um contingente de informação denotativa extraordinário para as formas humanas individuais.
Ora, tenho a impressão (outra vez só a impressão, porque não conheço de estudos sobre o assunto, além de avanços neurocientíficos sobre a receção e a leitura, ou da psicologia cognitiva e da psicolinguística sobre isto e, mais em concreto, sobre a significação e os valores semânticos e careço dos imprescindíveis dados para firmá-lo) de que o presente e o futuro estão requerendo pessoas com capacidade conotativa e de explicação conotativa, que sejam capazes de ler, interpretar e explicar fenómenos para procurar soluções ou implementações das melhores práticas para os interesses ou os objetivos que pretendem ou a que servem. Que sejam capazes de, indo além, determinar os funcionamentos adicionais e homólogos, incluindo os aspetos emocionais, sentimentais, associativos, das pessoas ou comunidades em causa e em função dos diversos quadros de situação.
E isto, convém explicitá-lo, em qualquer esquema profissional, laboral, social. Empresas, entidades, organizações, coletivos precisam de pessoas com essa capacidade conotativa, treinadas na análise global e relacional.
Imaginemos a filologia. Dedicar-se a ler textos… E, através deles, desenvolver aquela capacidade e, com ela, outras muitas de dimensões relevantes como as antes referidas. E trasladá-la a outros objetos não textuais, a tudo o que contenha, em ato ou em potência, umha narrativa: um plano, um movimento, um grupo, um setor, umha cadeia. A filologia, tão próxima da filosofia, esta que imprescindível deveria ser em qualquer grupo de investigação, por exemplo, e em qualquer projeto profissional ou empresarial… E elas, aliadas a muitos outros campos do saber, da antropologia à biologia, da psicologia social à economia.
O caminho é complexo e, provavelmente, muitas pessoas não estamos preparadas para oferecê-lo de modo suficientemente eficaz, por exemplo, nas nossas universidades. Pessoalmente, penso que entender o nosso ofício sobre os objetos e os fenómenos dos nossos universos como o estudo das narrativas, a sua relação com comunidades e territórios; a abordagem do modo em que as pessoas e os grupos elaboram, transmitem, selecionam, praticam opções e recursos para conseguirem os seus objetivos, sejam eles quais forem… O que, faltando melhor palavra, podemos definir recorrendo a um conceito que soa a palavrão ou ocultismo: culturologia…, entendida como o estudo da elaboração, transmissão e prática de opções e recursos nos grupos.
Esse trabalho demanda, em minha opinião, um determinado tipo de atenção e um modo de abordá-lo.
A filologia continuará sendo umha atividade individual para bastantes cousas; até por vezes umha atividade individual, de reflexão ou de aproximação. Ora, na proposta aqui enunciada, e na esfera dumha verdadeira transdisciplinaridade, deve conciliar-se com outros conhecimentos, habilidades, competências, destrezas, atitudes e aptitudes, importantes, necessárias em ocasiões, mas provavelmente orbitando nessa capacidade. E essa atitude culturológica demanda também a constituição e integração de equipas polivalentes e elas, também, tendencialmente, holísticas.
Essa constituição exige igualmente um trabalho prévio de teorização e definição de procedimentos. Talvez respondendo às perguntas: o que podemos fazer juntas? Quais fenómenos nos parecem relevantes para atender? Com que ângulos auto-reflexivos podem ser abordados? Aonde teremos que ir procurar novos recursos e agentes para a equipa?
Surge aqui outra utilidade de trabalho que me parece fundamental: o trabalho laboratorial; um trabalho que conjugue o ensaio/erro e submeta o trabalho de campo periódica e constantemente à classificação, interpretação, explicação e debate, mediante esse procedimento para ir redefinindo as pesquisas na procura de indicadores e parâmetros válidos para a explicação dos fenómenos. E onde são distribuídas tarefas e tomadas de decisões para a melhoria dos processos e dos resultados.
Essa atitude laboratorial nas ciências sociais e humanas deve ser, em síntese e no meu entender, a base da procura dumha determinada explicação o mais integral possível e baseada em parâmetros (previamente estabelecidos se possível, derivada da teorização), situacional (tempo, lugar, agentes) e situacionistamente (posições e autorreflexividade da pessoa ou da equipa enunciadora) da produção, funcionamento e receção de produtos, sejam eles quais forem.
Umha atitude que é alargável a qualquer atividade, por exemplo de planificação cultural, trabalho de ensino-aprendizagem, trabalho de pesquisa… Umha atitude laboratorial que se alarga à procura de soluções em rede, já correntemente aplicado, com o ocaso anterior, em determinadas corporações, em que são enunciados problemas e desafios que umha pessoa ou umha equipa da rede lança, interna e/ou externamente, para abrir espaços de cooperação com vistas à resolução de problemas ou à colocação de objetivos e desafios novos. Em todas estas dimensões, além das pessoas intervenientes no processo vinculadas às equipas ou potencialmente associadas a elas, a identificação de setores sociais chave para incluir em todo o processo pode resultar chave.
Ah, a filologia…! Em parte, em boa parte, esse caminho pode ser entendido como um retorno à filologia mais clássica e primeira. Agora, integrando-a numha ideia mais alargado, que poda explicar de modo unificado fenómenos complexos, nas mais dimensões possíveis deles e neles; e que se alie com outros saberes para maior eficácia no conhecimento e na planificação. Mas poderá começar-se por tentativas de aplicar a propriedade conotativa ao entendimento dos textos, de modo modesto e com todas as cautelas no percurso.
Nos últimos quarenta anos, quiçá mais, e em geral, na Galiza e em muitos outros espaços as pessoas com melhores qualificações no bacharelato/no ensino conducente à universidade escolhiam os cursos universitários das denominadas, simplista e abusivamente, «ciências». Se a linha aqui enunciada se abrir passo nas universidades, provavelmente se institua como um polo de atração que muit@s estudantes que procuram um sentido forte e útil para a sua formação e profissionalização ou intervenção social procurem e frequentem. E estou convencido que se imporá como profissão de futuro estudar isso e assim; e que essa perspetiva é fulcral para quem estiver interessad@ no social, na intervenção e na planificação.
Só um modesto desafio para exemplificar: sabemos o que significa casa, trabalho, língua, família, terra, território, comer, festa, na Galiza? Conhecemos as suas inter-relações? As respostas que eventualmente dermos, poderão ser segmentadas por grupos sociodemográficos e fenómenos, por implicações e atitudes?